quarta-feira, 22 de maio de 2013

Aura de papelão

As cartoneras editam arte em forma de livro, e estão se espalhando também pelo Brasil

(Matéria de Dairan Paul e Natascha Carvalho na Revista Nimbus)

A Estrela Cartonera, editora independente de Santa Maria, lançou em abril sua primeira publicação: Para Uma Nova Didática do Olhar, contendo poesias do premiado poeta santa-mariense Odemir Tex Jr. Na confecção minuciosa das cartoneras, capas de papelão e pinturas de diversos artistas buscam retomar a aura perdida de Walter Benjamin – cada livro, em sua estética, torna-se único. Julio Souto, mestrando em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos idealizadores da Estrela Cartonera, conversa com a Revista Nimbus sobre a filosofia da editora e os seus próximos lançamentos.


Nimbus – Como surgiram as cartoneras?
Souto - A primeira cartonera de todas, que é a Eloísa Cartonera, vai começar lá pelo ano de 2003, em Buenos Aires. Temos que lembrar que em Buenos Aires e na Argentina, em geral, havia uma crise econômica naquele momento. Então aparece uma nova classe de pobreza urbana – os cartoneros -, porque até então, na Argentina, eles não tinham a presença importante ¬que tinham em Buenos Aires.
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Foto: Natascha Carvalho
De técnicas mais simples até capas que podem fazer um livro valer 25 euros,
as Cartoneiras têm se espalhado pela América Latina


Esses cartoneros, que são os recicladores e catadores no Brasil, começam a ser frequentes em Buenos Aires. Pessoas de classe média, que tinham outros empregos, passam a ser cartoneros. Neste contexto, Washington Cucurto, escritor argentino e fundador da Eloisa Cartonera junto com o artista plástico Javier Barilaro, começam a integrar esta ideia, de articular os coletivos de catadores do bairro de La Boca com sua intenção de fundar uma editora. A ideia, basicamente, é produzir livros feitos de papelão comprado dos catadores, sempre procurando valorizar o trabalho deles e pagando o preço do papelão às vezes até três, cinco vezes mais caros do que uma recicladora. Cria-se essa articulação entre os intelectuais da editora e os coletivos catadores.
Isso começou em 2003, na Argentina, e se espalhou nos anos seguintes. Hoje existe em Córdoba e Mendoza (na Argentina), e já foi pra América Latina. A Bolívia foi uma das primeiras que teve editora cartonera, e posteriormente o México. Até hoje, os principais focos são Argentina e México, mas ela se espalhou também para alguns países da África, como Moçambique e Angola, e na Europa, na França e na Espanha.
No Brasil, sabíamos de dois casos mais conhecidos. Tem a Dulcinéia Catadora, que até agora é a cartonera mais consolidada no Brasil. É de São Paulo e tem um contato direto com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e com as cooperativas dos catadores da periferia de São Paulo. Basicamente, repete o esquema da Eloísa Cartonera: trabalha direto com os coletivos dos catadores, cria papelão e vários esquemas de oficinas – meios de intervenção urbana para gerar essas vinculações. E tem a outra cartonera em Florianópolis, Santa Catarina, a Katarina Kartonera. Atualmente, a gente decidiu introduzir essa noção das cartoneras aqui em Santa Maria.


N – É a primeira no Rio Grande do Sul?
S - Sim, e surgiu sobretudo a partir de um grupo de amigos. Eu conheci essa história por ter estado em Buenos Aires. Conversei com o pessoal do bairro de La Boca e depois com o pessoal daqui, do curso de Ciências Sociais e das Letras. Fomos criando o projeto de como poderia ser aqui e aí decidimos montar, principalmente a partir do impulso do Odemir Tex Jr. Até agora a gente lançou esse primeiro título, em 20 de abril, no Bar Café Cristal, o Para Uma Nova Didática do Olhar, e estamos esperando o segundo título para agosto. Estamos deixando esse intervalo de tempo para ver como vamos nos adaptar, como vamos funcionar, porque ainda não temos uma linha clara de como vamos seguir produzindo. Decidimos primeiro começar a criar nosso produto para depois ver como podemos articular diversas conexões aqui em Santa Maria.

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Foto: Natascha Carvalho
Primeiro livro publicado pela Estrela Cartonera, pioneira nesse tipo
de editoração no RS


N – E atualmente o projeto é idealizado por quem?
S - Tem um conselho editorial quase de brincadeira, porque é um grupo de amigos. Estou eu, o Diego Marafiga, o Vinicius Teixeira Pinto, o Uiliam Ferreira Boff, que é o próximo poeta a ser publicado, e o professor Fernando Villarraga. Também tivemos patrocínio de uma gráfica, o que facilitou para imprimir as páginas, e temos a multidão de montagem, com a participação de muitos amigos na hora de montar e colar as cartoneras.


N – Vocês já tiveram contato com os catadores daqui de Santa Maria?
S - Por enquanto não. Decidimos primeiro lançar, quase na tentativa de ver como vai funcionar. Estamos bastante satisfeitos com o lançamento. Fizemos lá no Bar do Cristal e já no mesmo dia vendemos quase 90 livros. Também pelo nome do Tex, que é muito premiado e bem conhecido aqui em Santa Maria, na Casa do Poeta e nos círculos literários. O livro foi vendido também na banca da Cesma, na Feira do Livro, e estamos bastante contentes. Agora vamos começar a ver, sentar e pensar sobre o contato com os coletivos.


N – Sem o auxílio dos catadores, o trabalho de vocês torna-se puramente artesanal mesmo.
S - Sim, é puramente artesanal. É que, por exemplo, pensando na Eloísa Cartonera, o auxílio dos catadores vai ser a coleta do material. Eles compram o material deles e aí termina a relação, é puramente econômica. É muito legal, porque eles têm um componente de valorização do trabalho, de pagar mais caro o produto. Valoriza-se um trabalho que é geralmente ignorado mesmo. E a Dulcinéia Cartonera também, em São Paulo, tem uma ligação bem direta com a cooperativa. Além de comprar o material, realizam algumas oficinas com eles, os filhos de catadores participam também pintando as capas. Estamos procurando uma nova didática do olhar, estamos procurando nosso jeito de fazer as coisas.

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Foto: Natascha Carvalho
O espanhol Julio Souto, que junto de alguns amigos fundou a Estrela Cartonera


Nesse primeiro número, a coleta do papelão foi direta. Temos que pensar que em Santa Maria é diferente de uma grande metrópole, como São Paulo, onde o papelão é de mais qualidade, mais disputado pelos vários catadores. Depois, na hora de confeccionar as capas, optamos por um modelo diferente das argentinas. A gente se inspirou um pouco nos livros de Manuel de Barros; tem umas reminiscências dos cadernos que utilizam o pano. Daí, para poder contar com a participação de vários artistas que a gente conhece e muitas vezes não estão aqui em Santa Maria, a gente fez este esquema sob um pano, de copiar e colar o nome dos autores e o título do livro, o selo da Estrela Cartonera e depois deixar um espaço para alguma ilustração de alguma parceria, de diversos autores. Às vezes oferecemos uma troca de 10 ilustrações e em troca um livro para o artista, daí mobilizamos todo este esquema de visualizar um artista de Santa Maria, outras vezes cedemos imagens de artistas que moram fora e outras vezes simplesmente recortamos de revistas. Buscamos um olhar diferente, tentando fazer uma brincadeira com o próprio título da cartonera.
N – Como vocês fazem o contato com os escritores?
S - Até agora foi bem espontâneo, não tivemos uma chamada aberta. Foi pelo contato direto, amigos da gente. Não tivemos nenhuma procura assim. Agora a gente está com o material do Boff e temos pensado mais dois livros para cobrir já quase metade do ano que vem. Daí a princípio nem abriríamos nenhum tipo de chamada.

N – E o preço do livro, como é estipulado? Vocês combinam com o autor?
S – É, até agora o autor é editor também, aí coincidiu estar num mesmo grupo, num mesmo sujeito coletivo coincidiu autoria, editoração e comercialização. Daí, claro, não tendo intermediários é bem tranqüilo colocar o preço. Eles estavam vendendo no lançamento a quinze reais. Foi uma aposta bem alta, mas nós queríamos valorizar bem o trabalho. É uma negociação mesmo, em função dos trabalhos com cada autor, com cada coletivo.

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Foto: Natascha Carvalho
“No contexto da internet, parece que uma técnica simples, como as cartoneras,
fica desvalorizada”, comenta Julio Souto.


N – Essa valorização de um produto artesanal, que foge da reprodutibilidade, surpreendeu vocês?
S – Começamos esperando pelo menos bater uma quantia interessante por várias razões: primeiro, as cartoneras na América Latina estão crescendo muitíssimo. Nos estranha bastante que o Brasil esteja ficando um pouco para trás nesse movimento das cartoneras. No Rio Grande do Sul não tinha nada. Nos surpreendeu que, mesmo já tendo na UFRGS, na área de Letras, alguma produção acadêmica sobre cartoneras, não teve nenhuma iniciativa. Daí, pela própria dinâmica das cartoneras, que aparecem num momento de crise ou de incerteza no contexto da produção editorial mesmo, no contexto da internet parece que tudo que seria produtividade de técnica simples fica mais desvalorizado. Nesse sentido, a gente se relaciona com todas as editoras que têm uma preocupação com a estética do livro mesmo.

N – Então, nas edições, o texto é o mesmo, mas a capa é única?
S - Sim, essa é a ideia. Estamos falando em um nível mais teórico da relação de conceitos do Walter Benjamin, da reprodutibilidade técnica e da aura do livro. A gente não está falando da superação da reprodutibilidade técnica, que é reconstruir a aura. Acho que é mais uma dialética, uma brincadeira entre o que seria a reprodutibilidade técnica, que são as próprias páginas, articulada com a aura da capa, porque cada capa é diferente. Também optamos por fazer uma série limitada de 186 exemplares, e nesse sentido pode-se pensar numa dialética entre a reprodutibilidade e o objeto único. Fala-se muito no conceito da poética do suporte, um conceito do César Aira, escritor argentino, que também participa da Eloísa Cartonera. Ele fala que muitas vezes a poética está se transferindo – tanto o procedimento de criação do seu suporte e como ele foi criado, bem como o lugar em que essa poesia está circulando. (N)

Escritor Odemir Tex Jr. lança nova obra

(Matéria no Diario de Santa Maria, 21/05/2013)

Foto: Ronald Mendes  /  Agencia RBS

O livro Para Uma Nova Didática do Olhar tem edição totalmente artesanal

O escritor Odemir Tex Jr., 33 anos, natural de Mata,  está lançando uma obra impulsionada por uma ideia surgida na Argentina em 2003, ano em que o poeta Washington Cucurto fundou uma editora dedicada à confecção de trabalhos com papelão, a Eloísa Cartonera.
O livro Para Uma Nova Didática do Olhar tem edição totalmente artesanal. A obra contém poemas empacotados em um libreto de 44 páginas, comum a todas as peças. O barato é que cada capa ganha uma imagem única, embalada em uma carapaça de papelão.
A reportagem completa você confere no Diário 2 desta quarta-feira. No vídeo, confira um bate-papo do cronista Márcio Grings com Tex.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Aguinaldo leu "Para uma nova didática do olhar"


"Para uma nova didática do olhar" reúne três ciclos de cinco poemas ("Ilíada", "Navigare Necesse" e "Panis et Circences"). São quinze peças poéticas muito delicadas, curtas mas potentes, férteis em associações, ricas em imagens. Um mundo grego e o mar parecem brotar de um circo, de um campo de futebol, de um cinema de cidade pequena. Odemir Tex Jr. registra o mundo das grandes descobertas infantis, da camaradagem dos que se sabem iguais, daqueles que crescem juntos e vivem, plenamente, sem temor. Mas quem escreve não é um menino, um jovem, nem um saudosista de afetos infantis, mas sim um autor muito seguro de si, que denuncia em seus versos ser um leitor rigoroso de clássicos (Homero, Melville, Borges, Pessoa), de conhecer muito da tradição de seu ofício. Os poemas sabem se defender sozinhos (e vários deles já foram premiados ou publicados anteriormente em antologias). A forma em que são apresentados os poemas, o livro que os enfeixa, faz parte de um projeto muito interessante. Trata-se de uma "edição cartonera", um formato de edição artesanal onde a encadernação é feita com capas de papelão trabalhadas artisticamente, o que torna cada exemplar uma peça única (meu exemplar é numerado 85/176 e pode ser rastreado pela editora - não sei exatamente como, mas sei que ao menos a editora sabe que este exemplar foi comprado por mim, o que nos torna algo cúmplices, Tex, a editora Estrela Cartonera, o volume que acolhi em meus guardados e eu). Este processo editorial surgiu há cerca de dez anos, na Argentina, e tem sido utilizado por artistas plásticos, fotógrafos e escritores - sobretudo na América Latina, como alternativa aos meios tradicionais de publicação. Não sei se cada exemplar poderia mesmo ser definido como um "livro de artista", mas o método de produção do livro lembra algo daquele formato. Poesia de primeira num livro-objeto de primeira, o quê mais faria um leitor feliz?
[início - fim: 23/04/2013]
"Para uma nova didática do olhar", Odemir Tex Jr., Santa Maria: editora Estrela Cartonera, 1a. edição (2013) capa de papelão 15x21,5cm., 42 págs., ISBN: 978-85-66301-08-3
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Aguinaldo Medici Severino, 52 anos, nasceu em São Bernardo do Campo, SP. Está radicado em Santa Maria, RS, desde 1994. É bacharel e doutor em física. amseverino.ufsm@gmail.com