(Matéria de Dairan Paul e Natascha Carvalho na Revista Nimbus)
A Estrela Cartonera, editora independente de Santa Maria, lançou em abril sua primeira publicação: Para Uma Nova Didática do Olhar, contendo poesias do premiado poeta santa-mariense Odemir Tex Jr. Na confecção minuciosa das cartoneras, capas de papelão e pinturas de diversos artistas buscam retomar a aura perdida de Walter Benjamin – cada livro, em sua estética, torna-se único. Julio Souto, mestrando em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos idealizadores da Estrela Cartonera, conversa com a Revista Nimbus sobre a filosofia da editora e os seus próximos lançamentos.
Nimbus – Como surgiram as cartoneras?
Souto - A primeira cartonera de todas, que é a Eloísa Cartonera,
vai começar lá pelo ano de 2003, em Buenos Aires. Temos que lembrar que
em Buenos Aires e na Argentina, em geral, havia uma crise econômica
naquele momento. Então aparece uma nova classe de pobreza urbana – os cartoneros -, porque até então, na Argentina, eles não tinham a presença importante ¬que tinham em Buenos Aires.
Foto: Natascha Carvalho
De técnicas mais simples até capas que podem fazer um livro valer 25 euros,
as Cartoneiras têm se espalhado pela América Latina
Esses cartoneros, que são os recicladores e catadores no
Brasil, começam a ser frequentes em Buenos Aires. Pessoas de classe
média, que tinham outros empregos, passam a ser cartoneros. Neste contexto, Washington Cucurto, escritor argentino e fundador da Eloisa Cartonera
junto com o artista plástico Javier Barilaro, começam a integrar esta
ideia, de articular os coletivos de catadores do bairro de La Boca com
sua intenção de fundar uma editora. A ideia, basicamente, é produzir
livros feitos de papelão comprado dos catadores, sempre procurando
valorizar o trabalho deles e pagando o preço do papelão às vezes até
três, cinco vezes mais caros do que uma recicladora. Cria-se essa
articulação entre os intelectuais da editora e os coletivos catadores.
Isso começou em 2003, na Argentina, e se
espalhou nos anos seguintes. Hoje existe em Córdoba e Mendoza (na
Argentina), e já foi pra América Latina. A Bolívia foi uma das primeiras
que teve editora cartonera, e posteriormente o México. Até
hoje, os principais focos são Argentina e México, mas ela se espalhou
também para alguns países da África, como Moçambique e Angola, e na
Europa, na França e na Espanha.
No Brasil, sabíamos de dois casos mais conhecidos. Tem a Dulcinéia Catadora, que até agora é a cartonera
mais consolidada no Brasil. É de São Paulo e tem um contato direto com o
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e com as
cooperativas dos catadores da periferia de São Paulo. Basicamente,
repete o esquema da Eloísa Cartonera: trabalha direto com os
coletivos dos catadores, cria papelão e vários esquemas de oficinas –
meios de intervenção urbana para gerar essas vinculações. E tem a outra cartonera em Florianópolis, Santa Catarina, a Katarina Kartonera. Atualmente, a gente decidiu introduzir essa noção das cartoneras aqui em Santa Maria.
N – É a primeira no Rio Grande do Sul?
N – É a primeira no Rio Grande do Sul?
S - Sim, e surgiu sobretudo a partir de um grupo de
amigos. Eu conheci essa história por ter estado em Buenos Aires.
Conversei com o pessoal do bairro de La Boca e depois com o pessoal
daqui, do curso de Ciências Sociais e das Letras. Fomos criando o
projeto de como poderia ser aqui e aí decidimos montar, principalmente a
partir do impulso do Odemir Tex Jr. Até agora a gente lançou esse
primeiro título, em 20 de abril, no Bar Café Cristal, o Para Uma Nova
Didática do Olhar, e estamos esperando o segundo título para agosto.
Estamos deixando esse intervalo de tempo para ver como vamos nos
adaptar, como vamos funcionar, porque ainda não temos uma linha clara de
como vamos seguir produzindo. Decidimos primeiro começar a criar nosso
produto para depois ver como podemos articular diversas conexões aqui em
Santa Maria.
Foto: Natascha Carvalho
Primeiro livro publicado pela Estrela Cartonera, pioneira nesse tipo
de editoração no RS
N – E atualmente o projeto é idealizado por quem?
S - Tem um conselho editorial quase de brincadeira,
porque é um grupo de amigos. Estou eu, o Diego Marafiga, o Vinicius
Teixeira Pinto, o Uiliam Ferreira Boff, que é o próximo poeta a ser
publicado, e o professor Fernando Villarraga. Também tivemos patrocínio
de uma gráfica, o que facilitou para imprimir as páginas, e temos a
multidão de montagem, com a participação de muitos amigos na hora de
montar e colar as cartoneras.
N – Vocês já tiveram contato com os catadores daqui de Santa Maria?
N – Vocês já tiveram contato com os catadores daqui de Santa Maria?
S - Por enquanto não. Decidimos primeiro lançar, quase
na tentativa de ver como vai funcionar. Estamos bastante satisfeitos com
o lançamento. Fizemos lá no Bar do Cristal e já no mesmo dia vendemos
quase 90 livros. Também pelo nome do Tex, que é muito premiado e bem
conhecido aqui em Santa Maria, na Casa do Poeta e nos círculos
literários. O livro foi vendido também na banca da Cesma, na Feira do
Livro, e estamos bastante contentes. Agora vamos começar a ver, sentar e
pensar sobre o contato com os coletivos.
N – Sem o auxílio dos catadores, o trabalho de vocês torna-se puramente artesanal mesmo.
N – Sem o auxílio dos catadores, o trabalho de vocês torna-se puramente artesanal mesmo.
S - Sim, é puramente artesanal. É que, por exemplo, pensando na Eloísa Cartonera,
o auxílio dos catadores vai ser a coleta do material. Eles compram o
material deles e aí termina a relação, é puramente econômica. É muito
legal, porque eles têm um componente de valorização do trabalho, de
pagar mais caro o produto. Valoriza-se um trabalho que é geralmente
ignorado mesmo. E a Dulcinéia Cartonera também, em São Paulo,
tem uma ligação bem direta com a cooperativa. Além de comprar o
material, realizam algumas oficinas com eles, os filhos de catadores
participam também pintando as capas. Estamos procurando uma nova
didática do olhar, estamos procurando nosso jeito de fazer as coisas.
Foto: Natascha Carvalho
O espanhol Julio Souto, que junto de alguns amigos fundou a Estrela Cartonera
Nesse primeiro número, a coleta do papelão foi direta. Temos que pensar
que em Santa Maria é diferente de uma grande metrópole, como São Paulo,
onde o papelão é de mais qualidade, mais disputado pelos vários
catadores. Depois, na hora de confeccionar as capas, optamos por um
modelo diferente das argentinas. A gente se inspirou um pouco nos livros
de Manuel de Barros; tem umas reminiscências dos cadernos que utilizam o
pano. Daí, para poder contar com a participação de vários artistas que a
gente conhece e muitas vezes não estão aqui em Santa Maria, a gente fez
este esquema sob um pano, de copiar e colar o nome dos autores e o
título do livro, o selo da Estrela Cartonera e depois deixar um
espaço para alguma ilustração de alguma parceria, de diversos autores.
Às vezes oferecemos uma troca de 10 ilustrações e em troca um livro para
o artista, daí mobilizamos todo este esquema de visualizar um artista
de Santa Maria, outras vezes cedemos imagens de artistas que moram fora e
outras vezes simplesmente recortamos de revistas. Buscamos um olhar
diferente, tentando fazer uma brincadeira com o próprio título da cartonera.
N – Como vocês fazem o contato com os escritores?
S - Até agora foi bem espontâneo, não tivemos uma
chamada aberta. Foi pelo contato direto, amigos da gente. Não tivemos
nenhuma procura assim. Agora a gente está com o material do Boff e temos
pensado mais dois livros para cobrir já quase metade do ano que vem.
Daí a princípio nem abriríamos nenhum tipo de chamada.
N – E o preço do livro, como é estipulado? Vocês combinam com o autor?
S – É, até agora o autor é editor também, aí coincidiu
estar num mesmo grupo, num mesmo sujeito coletivo coincidiu autoria,
editoração e comercialização. Daí, claro, não tendo intermediários é bem
tranqüilo colocar o preço. Eles estavam vendendo no lançamento a quinze
reais. Foi uma aposta bem alta, mas nós queríamos valorizar bem o
trabalho. É uma negociação mesmo, em função dos trabalhos com cada
autor, com cada coletivo.
Foto: Natascha Carvalho
“No contexto da internet, parece que uma técnica simples, como as cartoneras,
fica desvalorizada”, comenta Julio Souto.
N – Essa valorização de um produto artesanal, que foge da reprodutibilidade, surpreendeu vocês?
S – Começamos esperando pelo menos bater uma quantia interessante por várias razões: primeiro, as cartoneras
na América Latina estão crescendo muitíssimo. Nos estranha bastante que
o Brasil esteja ficando um pouco para trás nesse movimento das cartoneras.
No Rio Grande do Sul não tinha nada. Nos surpreendeu que, mesmo já
tendo na UFRGS, na área de Letras, alguma produção acadêmica sobre cartoneras, não teve nenhuma iniciativa. Daí, pela própria dinâmica das cartoneras,
que aparecem num momento de crise ou de incerteza no contexto da
produção editorial mesmo, no contexto da internet parece que tudo que
seria produtividade de técnica simples fica mais desvalorizado. Nesse
sentido, a gente se relaciona com todas as editoras que têm uma
preocupação com a estética do livro mesmo.
N – Então, nas edições, o texto é o mesmo, mas a capa é única?
S - Sim, essa é a ideia. Estamos falando em um nível
mais teórico da relação de conceitos do Walter Benjamin, da
reprodutibilidade técnica e da aura do livro. A gente não está falando
da superação da reprodutibilidade técnica, que é reconstruir a aura.
Acho que é mais uma dialética, uma brincadeira entre o que seria a
reprodutibilidade técnica, que são as próprias páginas, articulada com a
aura da capa, porque cada capa é diferente. Também optamos por fazer
uma série limitada de 186 exemplares, e nesse sentido pode-se pensar
numa dialética entre a reprodutibilidade e o objeto único. Fala-se muito
no conceito da poética do suporte, um conceito do César Aira, escritor
argentino, que também participa da Eloísa Cartonera. Ele fala
que muitas vezes a poética está se transferindo – tanto o procedimento
de criação do seu suporte e como ele foi criado, bem como o lugar em que
essa poesia está circulando. (N)